Racismo na infância exige respostas urgentes nas escolas de Salvador
Especialistas alertam para impactos do preconceito e da gordofobia no bem-estar de crianças e adolescentes negros
Por: Marcos Flávio Nascimento
20/11/2025 • 07:30
O racismo produz marcas profundas em crianças e adolescentes de Salvador, inclusive dentro das escolas. Em uma capital onde a população negra (pretos e pardos) representa 83,2% do total de habitantes, segundo o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o avanço do bullying racial, da gordofobia e da discriminação cotidiana aprofunda desigualdades, afeta a saúde emocional e amplia riscos de doenças como diabetes, hipertensão arterial, glaucoma e doença falciforme, que já incidem com maior frequência sobre a população negra.
A pedagoga e mestre em Educação, Hely Pedreira. explica que o ambiente escolar ainda falha em reconhecer violências sutis.
“A escola é este espaço onde se constroem e desconstroem estigmas negativos, pejorativos, entre outros, o que pode indicar a necessidade de rever o currículo”, afirma.
Para ela, muitas situações são tratadas como brincadeira, quando na verdade reproduzem estereótipos que acompanham crianças negras por toda a vida escolar. Já a agente de cultura, Marinalda Soares, que atua diretamente com mulheres negras alfabetizadas em Feira de Santana, reforça que o preconceito se manifesta cedo e de diversas formas.
“O bullying e o racismo adoecem porque as pessoas já chegam com essa carga de desigualdade social e não encontram apoio”, diz.
Racismo nas escolas afeta saúde e autoestima
Os efeitos não são apenas emocionais. Hely aponta que o adoecimento da população negra tem relação direta com as violências sofridas desde cedo: 'Sendo gordo ou negro, essas camadas de opressões só se somam'.
Essa soma de opressões se traduz em um impacto biológico mensurável: o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil), divulgado em 2023, revelou que a incidência de múltiplas doenças crônicas (como diabetes, hipertensão e obesidade) é 50% maior entre pessoas pretas do que entre as brancas. A pesquisa, conduzida por instituições como a Fiocruz e a Ufba (Universidade Federal da Bahia), aponta que, para cada 10 pessoas brancas com seis ou mais condições crônicas, havia 15 pessoas pretas na mesma situação.
O estudo reconhece o racismo como uma das causas fundamentais dessas desigualdades em saúde, atuando desde a primeira infância e expondo crianças negras ao estresse tóxico que agrava, ao longo da vida, condições como a doença falciforme, a hipertensão e o diabetes."
Nesse sentido, o estresse contínuo causado pela discriminação impacta a imunidade e pode agravar quadros de doenças que já são mais frequentes entre pessoas negras.
Hely Pedreira / Arquivo pessoal
Marinalda vivencia essa vulnerabilidade diariamente. Ela relata o caso de uma aluna com diabetes que abandonou as aulas após uma cirurgia no pé, agravada pela dificuldade de acesso à alimentação adequada e medicamentos.
“Ela não consegue nem pelo SUS o colírio que precisa para não ficar cega. Como é que uma mulher que recebe pouco mais de mil reais vai pagar isso?”, questiona.
A situação revela a conexão entre desigualdade racial, saúde precária e trajetória escolar interrompida. A mulher afirma que, nas comunidades periféricas, fatores como insegurança alimentar e falta de lazer aumentam a incidência de doenças crônicas em crianças e jovens.
“A qualidade de vida dessas pessoas é muito baixa. Muitas vezes a geladeira está vazia, só com um vaso de água”, pontua.
Chave para combate ao racismo escolar
Para Hely, a mudança começa na formação dos professores. Ela alerta que o cumprimento das Leis 10.639 e 11.645, que tratam da história e cultura afro-brasileira e indígena, ainda não é realidade plena nas licenciaturas: “Esse componente curricular ainda é optativo em alguns cursos. A obrigatoriedade precisa ser mais incisiva."
Marinalda vê na escola um espaço estratégico para reconstruir autoestima e proteger crianças negras da violência social. Ela lembra que atividades culturais podem funcionar como apoio emocional e caminho de pertencimento. “Quando uma criança aprende um instrumento ou entra numa peça teatral, isso transforma a autoestima. Cultura é alegria, está no sangue do povo baiano”, diz.
As duas destacam que o combate ao racismo nas escolas de Salvador precisa envolver educação, saúde e assistência social de forma articulada. Hely reforça que o país ainda vive os efeitos de uma abolição que não emancipou. “Vivemos os resquícios de um episódio trágico da nossa história que violou e ainda viola direitos do povo negro”, afirma.
Marinalda encerra com um chamado para ação. Para ela, reconhecer a realidade é o primeiro passo para transformá-la.
“Se a gente não tem boa alimentação, a imunidade baixa, adoecemos e perdemos anos de vida. É por isso que digo que a baixa expectativa de vida das nossas meninas negras não é algo distante. É o que vemos todos os dias.”
Em uma cidade majoritariamente negra, especialistas afirmam que enfrentar o racismo estrutural, garantir alimentação digna, fortalecer a rede de saúde e transformar o ambiente escolar são caminhos essenciais para proteger a infância e construir um futuro com mais equidade.
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