Quase 1 em cada 3 cuidadores admite bater em crianças apesar de lei contra agressões
Levantamento aponta contradições na forma de educar e proteger crianças
Por: Iago Bacelar
04/08/2025 • 18:30
Quase um terço dos cuidadores de crianças de até seis anos admite aplicar castigos físicos como palmadas, beliscões e apertos. A prática é proibida pela Lei Menino Bernardo (Lei nº 13.010/2014), em vigor desde 2014, mas ainda persiste na realidade brasileira, como mostra a pesquisa Panorama da Primeira Infância, lançada nesta segunda-feira (4) pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Dados expõem uso recorrente de punições físicas
O estudo, feito em parceria com o Instituto Datafolha, ouviu 2.206 pessoas, sendo 822 responsáveis diretos por crianças de até seis anos. Dentre os entrevistados, 29% afirmam que usam castigos físicos como estratégia disciplinar e 13% admitem fazê-lo com frequência. Além disso, 17% consideram esses métodos eficazes, embora 12% confessem agredir mesmo sabendo que não são eficientes.
Apesar da ilegalidade, o comportamento continua normalizado. "A gente é o país do ‘eu apanhei, sim, e estou aqui, sobrevivi’", comentou a diretora-executiva da fundação, Mariana Luz. Para ela, o dado revela a repetição de um padrão cultural e a resistência em adotar novas formas de educação. Ela aponta que esses métodos "não ajudam e não resolvem".
Consequências vão além das marcas físicas
A fundação reforça que nenhuma forma de violência contra crianças é inofensiva, e cita efeitos como agressividade, ansiedade, depressão e impactos na autoestima. A pesquisa também identificou que 14% dos entrevistados admitem gritar ou brigar com as crianças.
Apesar disso, os métodos mais utilizados pelos cuidadores ainda são conversar e explicar o erro (96%) e acalmar ou afastar a criança da situação (93%). No entanto, entre os que aplicam punições físicas, 40% acreditam que isso gera respeito à autoridade, enquanto 33% reconhecem que causa agressividade e 21% associam à baixa autoestima.
"A violência, a palmada, as agressões, as violações de direitos, os abusos, as negligências são detratores direto do desenvolvimento", disse Mariana Luz.
Falta de reação social e desconhecimento da primeira infância
A diretora também criticou a falta de reação social diante da violência infantil. Segundo ela, há mais mobilização diante da agressão contra animais do que contra crianças.
"Uma criança recebe um tapa, um berro, um beliscão dentro de um equipamento público e ninguém fala nada", afirmou.
Outro ponto destacado foi o desconhecimento sobre a primeira infância. Apenas 2% souberam definir corretamente esse período, que vai do nascimento até os seis anos, conforme a legislação brasileira. A pesquisa apontou que 84% não reconhecem essa fase como a mais importante do desenvolvimento humano. Para 41%, o ápice ocorre na vida adulta, enquanto 25% acreditam ser entre 12 e 17 anos.
Segundo Mariana Luz, esse desconhecimento compromete a prioridade que deveria ser dada às crianças pequenas. "Todos os picos do desenvolvimento físico, motor, cognitivo, socioemocional acontecem nos primeiros seis anos de vida", explicou. Ela lembrou que 90% das conexões cerebrais se formam nesse período, e que o cérebro realiza 1 milhão de sinapses por segundo.
Brincar é subestimado na criação infantil
A pesquisa também avaliou as práticas mais valorizadas pelos cuidadores. A maioria (96%) considera ensinar respeito aos mais velhos como a principal ação educativa, enquanto ações fundamentais como conversar (88%), frequentar creche (81%) e brincar (63%) aparecem em segundo plano.
Para Mariana Luz, esse dado evidencia a baixa valorização da educação infantil e do brincar, que são apontados pela Base Nacional Comum Curricular como fundamentais para a aprendizagem na primeira infância. "Você precisa do processo lúdico", afirmou.
Exposição a telas preocupa especialistas
O levantamento revelou ainda que crianças de até seis anos passam em média duas horas por dia diante de telas como televisão, celulares ou tablets. Em 40% dos casos, esse tempo vai de duas a três horas por dia.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda zero exposição para menores de dois anos e no máximo uma hora por dia para crianças entre 2 e 5 anos, sempre com acompanhamento de um adulto. Mariana Luz destacou que, apesar das dificuldades enfrentadas por muitas famílias, incluir as crianças em tarefas domésticas pode ser uma alternativa à exposição prolongada às telas.
Ela também lembrou que a responsabilidade pela primeira infância é compartilhada, conforme estabelece a Constituição Federal. "A responsabilidade dessa criança é minha, sua, é da família, é do Estado", reforçou. Em 2022, o STF decidiu que é dever do Estado garantir vagas em creches e pré-escolas para crianças de até 5 anos.